Violência doméstica

Violência doméstica: Terceira reportagem sobre a violência contra a mulher


Publicado em O Tempo, por Joana Suarez, no dia 07/10

Em 10 de março passado, foi promulgada a Lei 13.104/2015, que torna crime hediondo o assassinato de mulheres em razão do gênero – o feminicídio. Duas horas após a legislação entrar em vigor, foi divulgada, em Belo Horizonte, a notícia de que Wilson Spínola Lana, 42, tentou matar, com sete facadas, a mulher com quem viveu 20 anos. Janaína Araújo Spínola, 38, ficou 46 dias hospitalizada, seis em coma, mas sobreviveu após várias cirurgias e perda de órgãos. A reportagem foi em busca da vítima para saber como ela estava seis meses após o crime, mas Janaína havia se mudado do endereço em que morava com a família, no bairro Guarani, na região Norte da capital, onde tudo aconteceu.

Vizinhos não sabiam o paradeiro dela. Uma mulher, no entanto, deu uma nova informação: “Fiquei sabendo que ela perdeu o movimento das mãos, e o marido se suicidou na cadeia”. A irmã de Lana, com quem a reportagem conseguiu contato depois, nos confirmou a notícia: “Ele não era criminoso, por isso ficou deprimido. Na prisão, emagreceu 15 kg. Não aguentava ficar em pé. Tentou suicídio várias vezes e morreu (em julho) nos braços da Janaína. Para mim, isso não era amor, era doença”, conta Elisângela Spínola.

Com essa história, O TEMPO mostra, no terceiro dia da série “Que amor é esse?”, que as leis consideradas “de Primeiro Mundo”, para prevenir que a violência contra a mulher chegue ao extremo, muitas vezes são ineficazes. Além da Lei do Feminicídio, a Maria da Penha, há nove anos, prevê instrumentos para que as mulheres se defendam ao denunciarem os agressores. Um deles é a medida protetiva de afastamento do homem.

Janaína tinha duas medidas e já havia registrado 18 boletins de ocorrência, mas nada foi suficiente para evitar que o ex-marido entrasse na casa dela de madrugada para matá-la. Ele só não conseguiu isso porque uma das filhas, de 14 anos, lutou com o pai, que a jogou na parede. Até que o filho, então com 17 anos, tomou a faca e feriu o agressor. Nessa altura, Janaína já havia levado sete facadas. Ela estava desmaiada e perdia muito sangue. Toda a briga teve também como testemunha a filha caçula do casal, de 6 anos. Pai e mãe foram para o mesmo pronto-socorro. Ela voltou para casa, ele foi para o presídio.

A Morte. Quatro meses depois de ser preso, Lana foi levado novamente para o hospital em sua terceira tentativa de suicídio. Quem esteve com ele nos seus últimos minutos foi Janaína – avisada por Elisângela. “Quando o vi naquele estado, foi uma dor enorme. Não queria que ele morresse. Foi meu primeiro namorado. Ele morreu no mesmo braço que ele aleijou”, disse Janaína à reportagem, ao ser localizada em uma nova casa, na Pampulha.

Hoje, ela não consegue mexer as mãos porque as facadas atingiram os nervos dos braços, mas diz sentir orgulho de ter perdoado o ex-marido em vida. Para voltar a pentear os cabelos, Janaína precisa fazer uma nova cirurgia, porém ela não tem como pagar os exames, que custam R$ 1.300.

São os filhos da vítima que a ajudam em casa. A menina de 14 anos aprendeu a cozinhar. No dia em que a reportagem esteve lá, o menino, hoje com 18 anos, fez o café. O sorriso e a tranquilidade no rosto deles demonstravam que nenhuma dificuldade que a família possa ter será maior do que a que eles sofreram com o pai em casa, que fez com que eles perdessem o ano escolar. “Não tenho lembrança boa dele. Ele era muito preguiçoso. Uma pessoa ruim, mesmo sóbrio”, diz o rapaz, referindo-se ao problema que o pai tinha com drogas.

Saiba mais

Só BO. Enquanto os inquéritos de violência doméstica instaurados na capital em 2014 e 2015 somam 7.514, os registros de Boletins de Ocorrência (BO) – feitos nas unidades das polícias Militar e Civil – em apenas um semestre (janeiro a junho deste ano) chegam a 7.416. Isso confirma que nem todas mulheres representam criminalmente contra seus agressores.

Renovação. Neste ano, parte da equipe de policiais especializados em violência doméstica na capital foi alterada pelo desgaste emocional que o cargo provoca. Para a delgada Lílian Santos, que vai se aposentar após 13 anos, “a experiência ajuda na percepção dos casos que precisam de urgência, mas as novatas chegam com gás novo para apurar”.

350
Casos de lesão corporal, agressão verbal, abuso sexual e ameaça a mulheres são registrados todos os dias em Minas, de acordo com a média do primeiro semestre deste ano.

Mês passado

Uma adolescente de 16 anos foi assassinada com oito tiros na cabeça, no último dia 25, em Esmeraldas, na região metropolitana da capital. Ela foi encontrada caída em frente à casa do ex-namorado, que não aceitava o fim do relacionamento. A mãe contou à polícia que ele já havia feito ameaças à família.

Fonte: O Tempo

Violência doméstica: Marcas, traumas e medo levam mulheres à delegacia de BH

Publicado no O Tempo, por Joana Suarez, em 05/10/2015

Às 8h de uma segunda-feira, na Delegacia de Plantão de Atendimento à Mulher, no centro de Belo Horizonte, quem já estava lá era a bebê Brenda*, de 8 meses, miudinha como os seus cachos. O sorriso inocente e os olhos cinza brilhantes ignoravam a aflição da mãe, Aline*, 21, que, ao contrário, tinha os olhos inchados e não parava de chorar. Ela havia fugido de casa de madrugada – pela janela, contou – com medo de que o namorado, pai de Brenda, a matasse. “Ele me mordeu e jogou uma televisão de 40 polegadas em cima de mim, acredita?”. Todos que estavam na unidade policial acreditavam. Eram investigadores e delegada habituados a episódios do tipo. Só quem não podia entender era a pequena Brenda. Naquele dia, em que, durante nove horas, 30 mulheres procuraram a delegacia para denunciar casos de violência, aquela bebê passou a representar a esperança de que, quando ela crescer, uma nova realidade se apresente. Diferente da que hoje mata 47 mulheres por mês em Minas Gerais, segundo dados da Secretaria de Estado de Defesa Social.

A morte, para muitas, é o fim de uma trajetória marcada por tentativas de afastamento e perdão. A busca de ajuda na polícia, muitas vezes, é um desses capítulos. Apenas na capital, desde 2009 há uma delegacia de plantão disponível 24 horas exclusivamente para isso. A média diária é de 40 atendimentos, mas, na segunda-feira em que a reportagem esteve lá, o plantão não tinha chegado à metade e já registrava 30 vítimas, 12 com marcas de agressão. As demais queriam denunciar as ameaças do atual ou do ex-companheiro e recorrer às medidas de proteção.

Além de Aline, duas mulheres chegaram com bebês no colo. Uma delas também chorava muito. Após quatro anos de brigas, ela disse que, agora, queria tirar o marido de casa. “Ele tentou me enforcar”. A cada relato, havia uma relação doentia como pano de fundo e uma pergunta que se impunha: “Que amor é esse?”. Em busca de resposta, O TEMPO conversou com diversas vítimas e faz, desta segunda até sexta-feira, uma série de reportagens sobre a violência sofrida por mulheres – casos que, quando não resultaram em mortes, são motivo de muito sofrimento em vida.

Fuga

A mala vazia que Aline carregava na delegacia de plantão, que ela conseguiu emprestada, era para buscar roupas e objetos pessoais na casa da sogra, de onde saiu fugida após morar lá por cerca de três anos com Joaquim*, 30. Ele foi preso em flagrante enquanto batia nela e, por isso, aguardava em uma cela provisória no andar de baixo da unidade. A maior preocupação de Aline era saber quando Joaquim seria solto. “Será que ele sai hoje mesmo? Ele disse que mataria a minha família assim que saísse. Preciso ir embora da cidade”, disse. Em seguida, saiu da delegacia com a filha e acompanhada de policiais para entrar na casa da sogra, que também havia lhe agredido.

Uma semana depois, a reportagem entrou em contato com Aline, que contou sobre a soltura do namorado e que ele estava sendo monitorado por tornozeleira, mas a medida protetiva que daria a ela um equipamento semelhante para sinalizar a proximidade de Joaquim ainda não havia sido concedida. Por telefone, Aline demonstrava o mesmo desespero do dia em que estava na delegacia. “Ele continua me ameaçando. Não tive como viajar. Estou morando de favor, longe dele”. 

Na semana seguinte, só conseguimos contato com a mãe de Aline. Ela informou que a filha havia voltado para a sua casa e teria retornado ao trabalho. Porém, a residência fica perto de onde mora Joaquim. “Ela ainda não recebeu o tal relógio (equipamento) da Justiça, parece que vai ter que ter uma audiência primeiro, mas acho que ela desanimou. Minha filha é muito boba, já tá falando que vai deixar a bebê com o pai, vai acabar voltando pra ele. Não confio nessa Maria da Penha (lei), depois que a mulher morre é que vêm as medidas. Tô preocupada”, disse Antônia*.

Fim do relacionamento amoroso reforça sentimento doentio de posse

“Você não quer nada comigo mais, não? Então, beleza, se prepara para o velório”, dizia a mensagem de voz deixada pelo ex-namorado da manicure Mirele*, 22. Na delegacia, enquanto mostrava as costas machucadas, ela contava que aquela tinha sido a primeira e única vez que ele a agrediu. A raiva do companheiro aumentou quando ele viu fotos dela de minissaia no Facebook.

Entre os diversos casos que chegam à delegacia, muitos são do ex que não aceita o fim do relacionamento ou do atual que jura que a mulher o trai e faz disso uma paranoia. “Vivi 18 anos com ele e sempre apanhei (o casal teve três filhas). Separamos há três anos, mas não tive sossego. Ele me ameaçou com faca agora. Acha que é meu dono”, desabafa Viviane*, 38. Perto dela, Luana*, outra vítima, disse: “Eles são todos iguais. A sociedade é machista. Ele já namora, é livre, mas eu não posso. Dessa vez, ele me bateu na frente da nossa filha”. Luana está separada há oito meses, sendo que há seis entrou com medida protetiva para garantir a distância do ex-marido e não adiantou.

Na delegacia, as mulheres dividem suas histórias enquanto aguardam cerca de três horas para completar todo o procedimento – do registro da queixa ao exame de corpo de delito e o pedido de medida protetiva. Cinco investigadores, por turno de 12 horas, coletam os depoimentos.

Estrutura

Especializadas. Em Minas, existem 66 Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam), sendo quatro na capital e as demais em cidades-polo. Nos municípios onde não há, o atendimento é feito na delegacia comum.

47Mulheres são mortas a cada mês em Minas Gerais, vítimas de violência doméstica, de acordo com a média registrada no primeiro semestre deste ano.

Mês passado

Enquanto a série era produzida, um empresário, de 53 anos, enforcou e matou a mulher, também de 53, durante uma discussão no apartamento do casal, no Lourdes, na região Centro-Sul da capital. Em 24 de setembro, ele se entregou à polícia e confessou o crime, ocorrido no dia anterior. Ele contou aos policiais que pediu à mulher que baixasse o tom de voz e tapou a boca dela. Irritado com as provocações, o empresário disse que a agarrou pelo pescoço, e ela desmaiou. O caso está sendo investigado. 

Números

40Atendimentos a vítimas são feitos, em média, todos os dias em BH

74Policiais civis trabalham em quatro delegacias de mulher da capital

22.522Medidas protetivas foram concedidas em 2014 no Estado

1.442 Mandados de prisão foram expedidos contra agressores em MG em 2014

Fonte: O Tempo